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junho 29, 2020O vereador Pier Petruzziello (PTB) protocolou nesta terça-feira (23) Projeto de Lei que determina aos hospitais, e outros estabelecimentos de interesse à saúde em Curitiba, o fornecimento de dieta especial necessária à pessoas com doença celíaca. O projeto deverá ainda passar pelas comissões antes de ir para a votação em plenário.
De acordo com a justificativa do projeto, a doença celíaca, CID 10 K90.0, é uma enteropatia crônica do intestino delgado, de caráter autoimune, desencadeada pela exposição ao glúten (proteína presente no trigo, centeio, cevada e aveia) em indivíduos geneticamente predispostos. De acordo com a OMS, 1% da população mundial é celíaca. O único tratamento para o celíaco é uma dieta sem glúten e sem contaminação cruzada (teor de glúten< 20ppm de acordo com o Codexalimentarius da ONU do qual o Brasil é signatário). “O projeto de lei leva em consideração que na grande maioria das cozinhas hospitalares e entidades congêneres não existe segregação na área de preparo dos alimentos servidos aos pacientes, aliado ao fato das dificuldades impostas por alguns hospitais e entidades congêneres para permitir a entrada de alimentação adequada e segura ao celíaco que precisa de internamento”, afirma Pier.
Para conhecer um pouco mais sobre a doença celíaca e a importância desse novo projeto apresentado à Câmara Municipal de Curitiba, conversamos com a Giseli Cristina do Rosário Vilela da Silveira Consalter Kauche, diretora jurídica da Associação de Celíacos do estado do Paraná (Acelpar).
Há quanto tempo você descobriu que é celíaca e como foi esse processo até descobrir? Quais foram os primeiros sintomas?
Eu descobri a doença celíaca há três anos, depois que a minha filha nasceu. A minha gravidez foi bem complicada, eu tive vários problemas diagnosticados no pré-natal e algumas coisas que não tinham explicação. Eu tive um hipertireoidismo absurdo, muito alto, totalmente incompatível com qualquer outro problema de saúde que eu já havia tido e quando eu tomei o remédio para hipertireoidismo na gravidez, a situação agravou. Então, a minha tireóide oscilava e se agravou de uma forma muito intensa. Eu tive problemas cardíacos também, problemas de labirinto, problemas na placenta. Eu sangrei a gravidez inteira e depois de ter a minha filha, eu tive hemorragia pós-parto. A fase da minha gestação foi bem complexa e depois disso, as coisas complicaram ainda mais. Eu tive problema na pele e os médicos falavam que era acne em último grau e que não havia cura. Não importava o que eu fizesse, o que eu tomasse e o que eu tentasse que nada resolvia. Um pouco mais para frente, eu fui diagnosticada com psoríase e foi bem difícil também.
O diagnóstico da doença celíaca é muito complexo porque a doença tem alguns sintomas que são característicos, outros nem tanto e em alguns casos, a pessoa pode ser assintomática. Eu sempre tive vários episódios de problemas gastrointestinais desde criança por causa do consumo de trigo. Agora eu sei que à época era por consumo de trigo.A história é longa. Ainda criança, com 10 meses eu tive o diagnóstico de APLV, que é a alergia e a intolerância ao leite de vaca. Eu e minha família morávamos no interior do Paraná no início da década de 90 e foi muito difícil, foi bem quando o país enfrentava uma grave crise política e econômica, por conta dos problemas do ex-presidente Collor, e nós não tínhamos dinheiro para comprar outro tipo de leite.
Traçando uma linha do tempo, eu tive APLV com 10 meses, depois tive a segunda vez com três anos, depois aconteceu na adolescência entre os 12 e 13 anos e hoje em dia eu tenho também. Aí, eu acabei nunca mais fazendo teste porque eu tenho intolerância à lactose também. Então, uma coisa somada a outra eu acabei nunca mais tomando leite. Durante todo esse tempo, eu tive problemas que nós não encontrávamos explicação. De 16 para 17 anos, eu tive um problema no rim, uma infecção renal chamada pielonefrite aguda e fiquei internada por cinco dias com muita febre, dor nas costas, totalmente sem explicação. De 22 para 23 anos, eu voltei a ter. Foi um pouquinho antes de ter a Mariá, minha filha. E depois da gravidez, eu tive de novo. O problema renal é bem ligado a doença celíaca e na época ninguém desconfiava. Eu sempre tive várias coisas como anemia e outros sintomas que poderiam ter sido facilmente ligados à doença celíaca e nunca foram. Eu tenho psoríase também. Eu e o meu marido brincamos que nas minhas fotos do casamento são poucas que dá para mostrar porque a maioria mostra o meu peito e as minhas costas que estavam praticamente em carne viva, tamanho era o problema na época e todos achavam que era acne e na verdade era psoríase. Por não saber, eu tratava da forma errada. Eu tinha vários problemas aleatórios que depois que fui diagnosticada com a doença celíaca, consegui perceber o encontro dessas várias coisas que eu sempre tive. Sobre o diagnóstico em si, ele é bem complexo.
O meu diagnóstico começou quando o meu pai teve que fazer uma cirurgia de emergência no intestino. Isso foi no dia 15 de dezembro de 2014. Depois que ele operou, durante a consulta para ver se estava tudo bem, eu fui com ele à médica e ela perguntou se estava tudo bem comigo. Eu disse que estava. E então ela disse que a minha pele estava estranha. Ela pediu para eu tirar a blusa para ela examinar e disse que a minha pele estava com jeito de ter uma dermatite herpetiforme, que uma doença ligada à doença celíaca. Ela orientou que eu fizesse alguns exames que deram negativo, mas de qualquer forma, ela me encaminhou à uma reumatologista para continuar a investigação. A reumatologista pediu um monte de exames, que são marcadores da doença celíaca. Quando saíram os resultados, eles estavam muito ruins. Depois disso, ainda juntando com a sinusite crônica que eu tenho, praticamente todo mês eu tomava antibiótico, ela acabou pedindo uma endoscopia. Nessa endoscopia apareceu que era doença celíaca mesmo e iniciei o tratamento. Eu brinco que a descoberta não foi nada convencional, foi através de uma consulta do meu pai.
Quais são as dificuldades que uma pessoa celíaca enfrenta no dia-a-dia?
A grande dificuldade é achar um lugar apto para comer. Curitiba é a capital que mais tem restaurantes aptos. Nós temos entorno de 16 agora. A gente brinca que fideliza o restaurante que são aptos e a gente pode comer com segurança. Além de correr o risco de passar mal, a doença celíaca inflama o intestino. Então, acaba piorando a doença. Já é difícil você conviver com a doença celíaca e por isso a gente acaba não se arriscando em lugares que não são aptos.
Como é a sua rotina de alimentação? É possível se alimentar bem mesmo com as restrições?
Eu não sou muito boa na cozinha, cozinho o trivial. 80% do que eu como é a minha mãe quem faz. A minha mãe acabou fazendo diversos cursos culinários direcionados para quem tem doença celíaca e ela faz muitas coisas para mim, como bolos, pães, bolachas, comida convencional, o que acaba me ajudando muito. Eu geralmente almoço e janto em casa com alimentos que são seguros ou peço delivery dos restaurantes aptos. A comida tradicional do brasileiro, que é o arroz, feijão, legume, salada, ovo não tem glúten. É seguro.
É possível se alimentar bem com as restrições sim. A doença celíaca normalmente nunca vem sozinha. Ela “puxa” outras alergias alimentares e doenças autoimunes como a Tireoide de Hashimoto, doenças hepáticas, doença renal e doença de pele. Além da doença celíaca, eu tenho intolerância à lactose também, que é a alergia à proteína do leite de vaca e tenho alergia a berinjela e ao gengibre. É estranho, mas isso o que eu tenho. Mas mesmo assim é possível ter uma alimentação saudável até porque frutas, verduras, legumes, feijão, carne, frango não têm glúten. Hoje já temos opções de massas sem glúten também. A alimentação de uma pessoa celíaca que faz tratamento e se alimenta corretamente é até mais saudável do que uma pessoa convencional se alimentaria ao comprar uma coxinha na esquina ou almoçar um pastel. E se pensar pelo lado da alimentação saudável, ela é uma alimentação mais saudável tanto em razão da escassez dos produtos gordurosos, com farinha, açucarado. Nós precisamos manter uma alimentação mais saudável para repor todas as vitaminas e minerais que o corpo precisa.
Hoje, com os avanços na área da segurança alimentar, há mais opções? Como era ser uma pessoa celíaca há tempos atrás?
Hoje existem muito mais opções do que na época que eu descobri a doença. Mesmo com o avanço de opções, ainda não é suficientemente grande para colaborar de forma perfeita para a vida do celíaco. O nosso principal problema hoje em dia é a rotulagem dos alimentos, que por sinal é o tema central da minha pesquisa no mestrado. Nós temos o problema da RDC 26/2015, que fala sobre a rotulagem de produtos alergênicos e eles incluíram o glúten. Só que o glúten não causa alergia alimentar. É uma doença autoimune. Então, por exemplo, a OMS fala no código alimentar que uma pessoa celíaca pode consumir até 0,20 ppm de glúten por quilo de alimento porque através de estudos científicos essa quantidade não reage à doença celíaca. Então, o celíaco pode comer até 0.20 ppm de glúten por quilo de alimento e essa RDC 26/2015 feita pela Anvisa aqui no Brasil diz que eu só posso rotular alimentos sem glúten se for 0 ppm. Então, nós temos muitos produtos rotulados com o glúten que na verdade o celíaco poderia consumir. É um problema de segurança alimentar e também em nível de sustentabilidade. É um alimento que para o celíaco e para outra pessoa que não seja celíaca, mas que não pode consumir glúten, ele acaba se tornando inútil porque ele vem rotulado de forma errada e a gente acaba não podendo consumir em razão de não saber qual a porcentagem de glúten que tem aquele alimento. Por outro lado, a gente tem o problema daquele alimento que é rotulado como “não contém glúten”, mas ele está contaminado seja pelo maquinário da indústria por produzir produtos com e sem glúten na mesma máquina ou ele está contaminado quando é retirado do campo pela colheitadeira que colhe trigo e colhe arroz, por exemplo. Acho que hoje em dia, o principal problema de segurança alimentar é a questão da rotulagem dos alimentos. E sobre a segurança alimentar de alimentos manufaturados, artesanais ou prontos para consumo imediato em lanchonetes, restaurantes e mercearias, temos a questão da desinformação das pessoas. O principal problema da doença celíaca ao consumir alimentos prontos, é que ele não pode ter contaminação cruzada para ser considerado seguro. Por exemplo, o dono da lanchonete que faz uma coxinha normal feita com farinha de trigo, não pode usar a mesma fritadeira e o mesmo óleo para uma coxinha que ele faz com farinha de arroz e massa de batata doce porque vai contaminar. O glúten é uma proteína, então ele gruda nas coisas e você precisa de determinados procedimentos químicos específicos para retirá-lo que logicamente não tem como fazer em qualquer estabelecimento. Então, é muito complicado a gente falar de segurança alimentar para produtos prontos para o consumo em razão de que as pessoas não conhecem a questão da contaminação cruzada. Já temos em Curitiba restaurantes com cozinhas compartilhadas, que têm o selo da Acelpar. Em outros países, como os EUA e a Itália, que eu tenho conhecimento pessoal, 99% dos restaurantes conseguem fazer uma cozinha compartilhada e de forma segura para o celíaco. Então, é uma questão de fazer leis rígidas e de fazer cursos técnicos para levar informação aos donos de restaurantes. Há muito tempo era muito difícil conseguir comer fora de casa. N época que eu descobri a doença celíaca também existiam pouquíssimos restaurantes em Curitiba. Hoje a situação está bem melhor. Curitiba abriu diversos restaurantes e a gente espera que abram cada vez mais, ainda mais agora que Curitiba é a capital do celíaco, a gente espera que assim que passar essa pandemia, a gente consiga até mesmo atrair turismo para Curitiba em razão das opções que temos aos celíacos.
Qual a importância de ter uma dieta especial nos hospitais?
Essa é uma questão de saúde pública mesmo, importantíssima porque o doente celíaco, quando ele se contamina, além de passar muito mal, inflama o intestino. E esse é gatilho para várias outras doenças. Quando você tem problema de inflamação do intestino e a pessoa tem outras doenças autoimunes ele não absorve vitaminas e minerais. A pessoa que tem problema no rim vai desregular o rim. Então não é que simplesmente a pessoa vai passar mal naquele momento e depois vai ficar tudo bem. Não vai ficar tudo bem! O intestino é considerado o cérebro do corpo, ele comanda tantas partes do nosso organismo e se ele desregula, compromete todo o resto.
Então a gente precisa garantir que a pessoa celíaca tenha tem uma alimentação adequada quando necessitar de internamento hospitalar. Seja por meio de uma cozinha específica para a preparação de alimentos sem glúten dentro do hospital ou uma cozinha compartilhada com segurança, ou que esse estabelecimento médico permita que venha alimento de fora, de restaurantes aptos para que a pessoa possa se alimentar. Então ela pode ser internada por um motivo e depois ela acaba ficando mais tempo no hospital por outro motivo que não precisava, contraído pela alimentação inadequada. Já tivemos vários casos em Curitiba de crianças, adultos, idosos e pessoas que foram internadas com qualquer tipo de problema de saúde que voltaram a ser internados em razão da alimentação errada que foi servida no hospital. Veja, se é direito constitucional de todo cidadão ter uma alimentação adequada, ter uma alimentação segura, ter uma alimentação que provém a dignidade de vida, dignidade da desistência, a gente precisa. É necessário que o hospital entenda isso e que o hospital tenha uma segurança alimentar e nutricional forte e firme a ponto de fornecer um alimento seguro, porque para o diabético não tem problema, para uma pessoa que tem alergia a ovo não tem problema, mas para a doença celíaca tem por conta da contaminação cruzada. Hoje, é complicado você entrar no ambiente hospitalar e ter essa conversa firme sobre segurança alimentar, porque a gente tem uma grande resistência da ala nutricional dos hospitais, não vou dizer de todos, mas da grande maioria dos hospitais a gente entende “a não é doença celíaca, tudo bem é sem glúten, mas às vezes a pessoa se esquece da questão da contaminação cruzada. É um risco constante.
Você acredita que a nova lei proposta vai facilitar e melhorar a vida dos celíacos? Você já teve alguma experiência em atendimento hospitalar que não havia opção de alimentação?
Eu tive muitos problemas com a alimentação em hospitais. Mas sem dúvida o pior de todos foi no ano retrasado em razão de problemas cardiovasculares decorrente da doença celíaca. Eu tive uma trombose análoga no braço esquerdo, na veia cefálica. Eu tirei 17 cm da aveia cefálica e fiquei com uma cicatriz horrível por sinal e a médica que fazia esse tipo de operação só operava em um único hospital da cidade e eu fiquei entre cinco e seis dias internada. Neste hospital, não havia alimentação segura, não tinha cozinha segura, não tinha cozinha compartilhada segura, não tinha nada. Eu operei de manhã e quando chegou a noite, que foi quando eles me serviram alguma coisa, eles me levaram uma macarronada. Inacreditável, sim estava escrito que era alimentação para doença celíaca. Aí eu lembro que meu pai chamou a nutricionista chefe do hospital e a nutricionista disse que ia verificar. Aí eles saíram e voltaram com uma canja de galinha e a daí minha mãe foi lá e perguntou: “Essa canja foi feita com glúten?” Eles responderam que não, que essa canja havia sido feita com arroz, batata, frango desfiado e caldo de galinha. Caldo de galinha tem glúten. Para resumir, eu não consegui comer nada efoi uma luta tremenda para que permitissem que levassem comida para mim.
Tive boas experiências também. Em outro internamento, o hospital me ofereceu um lanche, todo industrializado, mas era seguro. Eu ingeri suco, bolacha salgada industrializada e bolacha doce industrializada. Mas aquilo nem importa porque de alguma forma, eles oferecerem comida segura. Eu acredito sim que essa nova lei protocolada pelo vereador Pier, vai facilitar e melhorar a vida dos celíacos. A partir do momento que a gente tenha segurança de que se precisar ser internado por qualquer motivo que seja, vai ter alimentação segura para conseguir recuperar daquele mal que foi atingido. É muito importante a gente ter a segurança de saber que vai para um local onde vai ser atendido de forma plena e não internado com problema de saúde e ainda ficar preocupado se vai ter comida segura para poder se alimentar. Infelizmente é bem complicado mesmo.
Alguma consideração que acredita ser importante a ser levantada?
Eu quero agradecer a disposição do vereador Pier por levantar e segurar essa bandeira tão importante junto com a gente. A gente tem alguns protocolos para limpeza de louça, como álcool 70 e lavagem tripla, que a gente sabe que é complicado fazer no hospital. Se o ambiente da cozinha não for seguro, a gente não tem como garantir uma alimentação segura para doentes celíacos. Então essa lei vem, eu diria que para resolver a questão do internamento do doente celíaco, não só do doente celíaco, mas também a pessoa que é sensível ao glúten, alergia ao trigo. Tem a questão dos autistas e das pessoas com Síndrome de Down, que em alguns casos com a dieta de restrição ao glúten acabam tendo uma melhora. Muitas pessoas serão beneficiadas com essa nova lei. A desinformação ainda é o principal problema. Como pesquisadora da área do direito talvez até poderia dizer que o problema do mundo é a desinformação, seja em qualquer área, mas no caso específico da doença celíaca a gente tem com a desinformação junto com a contaminação cruzada que são dois grandes vilões, que atrapalham a vida de quem tem doença e que torna o nosso dia-a-dia muito mais pesado do que ele precisava.